sábado, julho 29, 2006

Peta I: Do Diabo

Segue-se a transcrição integral do primeiro capítulo da obra Rega as flores que elas crescem.
Peta I: Do Diabo
O acaso ditou que o décimo terceiro dia daquele mês coincidiria com uma sexta-feira, tempo de tantas histórias bizarras que se têm contado.
Alheio a superstições por defeito, Torres sempre vira os gatos pretos passarem em frente à sua indiferença. Jamais talismã algum lhe havia merecido tributo por uma graça da fortuna.
Contudo, foi incapaz de levar uma vida à margem de assombros, depois de, em certa ocasião, um amigo lhe ter narrado, na primeira pessoa, um episódio deveras invulgar, uma vivência perturbadora. Havia-lhe sido dito que teria uma visão do próprio Diabo todo aquele que, à meia-noite de uma sexta-feira 13, percorresse ininterruptamente o perímetro de uma igreja por treze vezes. Tentado pelo desafio e possuído por um espírito aventureiro, atrevera-se a questionar o que julgava não passar de uma crendice. Todavia, tal peripécia acabaria por lesá-lo visceralmente, deixando-lhe a cicatriz de um terror traumático, resultante de um encontro transcendental digno do pior dos pesadelos.
Atiçado pela curiosidade, Torres aproveitou, daí a poucos dias, o ensejo com que o calendário o brindou para realizar a mesma experiência.
Pela calada da noite, montado no selim da sua bicicleta, subiu, pedalando, a colina cumeada por uma igreja escassamente iluminada pelo clarão lunar.
Tendo-se aproveitado do tronco de um sobreiro para estacionar o seu veículo, o jovem, por breves minutos, aguardou, no átrio do edifício, que se fizesse ouvir a primeira das doze badaladas prestes a retumbarem, para que pudesse enfim circular.
Tocou o sino. Torres respirou fundo, tentando dissipar o nervoso miudinho que sentia dentro de si, e deu início à caminhada, acompanhando de perto as paredes exteriores do prédio.
Só uma volta estava concluída, assim que o campanário voltou a abandonar o monte ao silêncio.
O rapaz prosseguia com firmes passadas largas, arfando, com as mãos afundadas nas algibeiras do sobretudo, gelado pela mesma brisa frígida que se entranhava nas copas das árvores em redor, fazendo as folhas farfalharem secamente.
Do povoado afastado, partiam uivos lamuriantes que se dissolviam na distância, soando a um chamamento aos espectros albergados nas sombras dos morros brumosos.
Ignorando o coro de gorjeados fantasmagóricos que emergia do negrume, Torres dava entrada na recta final do passeio, a décima terceira volta.
Por uma última vez, contemplou o vazio do pátio fronteiro à igreja, onde manteve os olhos fixos até se perder na curva.
À medida que ia cruzando os derradeiros metros da etapa, o seu coração remexia-se convulsivamente dentro do peito, indomável, sem que nada o pudesse amansar. Na sua cabeça, uma entropia de ideias. Ocorreu-lhe o pensamento de desistir daquela parvoíce, mas, se o fizesse, decerto arrepender-se-ia posteriormente, e, então, dali em diante, haveria apenas um sétimo de possibilidades de que um dia 13 voltasse a cair numa sexta-feira. Por outro lado, invadia-o o pavor do que pudesse estar ali ao virar da esquina. Talvez fosse melhor parar, enquanto ainda era tempo. O que ganhava ele em ver o Diabo, afinal? Mas também não seria agora que iria ceder ao medo. Torres era um homem e dos valentes. Havia chegado a hora de o provar a si próprio.
Enchendo-se de uma extraordinária dose de coragem, sem hesitar por um instante, o jovem, determinado, dobrou o canto que assinalava a meta e parou.
De imediato, o seu olhar percorreu a fachada da igreja, pregando-se na escadaria, onde se sentava, voltado, um vulto imóvel, encapuzado, embrulhado num manto comprido. Ligeiramente curvado, com os cotovelos pousados nos joelhos, servia-se das mãos em concha como pretenso suporte para o queixo. Parecia ter a aparência de um homem.
Torres admirava-o, mudo, petrificado. Por momentos, apeteceu-lhe desaparecer antes que a sua presença pudesse ser notada, mas o desejo de chegar mais perto e fitar aquele rosto compeliu-o a aproximar-se.
Pé ante pé, sorrateiramente, o rapaz entrou no adro, até alcançar um ponto em que a luminosidade diminuta lhe permitisse ter um outro vislumbre da estranha figura.
Foi então que reparou no escarlate berrante das suas vestes, bem como na presença de um tridente de cabo longo, jazido num dos degraus a seus pés.
Sem se deixar intimidar pela majestade da envergadura descomunal daquela personagem, Torres continuou a andar, numa marcha furtiva.
Abruptamente, algo se agitou debaixo do manto do desconhecido, sem que este reagisse. O jovem deteve-se, amedrontado, e viu surgir debaixo do rubor da sua capa o que se assemelhava a uma cauda. Esguia, revolvia-se, arrastando-se pelas caleiras das pedras sujas das escadas, que vergastava com intensidade.
Aturdido, Torres foi incapaz de conter uma exclamação, que não passou despercebida à monstruosa criatura, que se virou asperamente para o rapaz apavorado, exibindo a sua face vácua, negra. Sim, era ele, o Diabo!
Comandado pelo pânico, o jovem correu desesperadamente para a sua bicicleta. Olhou para trás e viu o maléfico ser lançar-se no seu encalço, deslocando-se a uma velocidade impressionante, com o enorme tridente erguido nas alturas. Vociferava, trovejante, palavras imperceptíveis.
Torres pedalava, horrorizado, descendo vertiginosamente a encosta. O relevo era extremamente acidentado, provocava solavancos constantes. Por detrás da vegetação densa, avistava-se já a estrada. Poucos segundos separavam-na do rapaz.
O perseguidor provavelmente havia sido despistado, dado que já não eram audíveis os seus brados.
Mais uma vez, Torres voltou-se para ver se ainda o tinha à retaguarda, mas, antes que pudesse reagir, foi inesperadamente atingido por uma violentíssima bofetada no rosto. Estonteada, a vítima caiu da bicicleta, que se desfez nos arbustos, e rebolou desnorteadamente sobre a vegetação agreste, esboçando gemidos de dor à medida que as pedras lhe infligiam golpes por todo o corpo, até chocar brutalmente com o tronco de uma árvore.
Levantou-se, em visíveis dificuldades, e coxeou até à bicicleta danificada, conduzindo-a de seguida para a estrada, tão rápido quanto pôde.
Só respirou de alívio já chegado a casa, donde mirou, como se fosse a primeira vez, aquela paisagem de uma igreja abandonada no cimo do monte, cercada de floresta, numa noite de lua cheia.

sábado, julho 22, 2006

Sinopse de Rega as flores que elas crescem

Rega as flores que elas crescem resulta de uma compilação de contos, redigidos a partir de uma série de relatos fantasiosos por parte de um jovem contador de petas compulsivo.
O projecto foi encetado por um grupo de três dos seus antigos colegas de escola, testemunhas das suas narrações na primeira pessoa, que decidiram reconfigurar as suas incríveis histórias num estilo de carácter literário, de modo a materializar a sua memória e poder partilhá-las com um público mais vasto.
A criatividade suprema e elevado grau de comicidade que patenteiam, aliados à hilariante absurdez da convicção do autor na sua veracidade, foram factores que motivaram a realização deste trabalho.
Ao longo da obra, são particularizadas as surpreendentes façanhas e desventuras de Torres*, desde a sua fuga in extremis de um dos aviões que embateu no World Trade Center, durante os atentados do dia 11 de Setembro de 2001, até uma perseguição criminal a alta velocidade, que empreendeu montado numa mota de água, em plena via rodoviária.
Os autores estão certos de que os conteúdos deste volume, preparados com todo o escrúpulo, serão apreciados pelo caro leitor.
* Nome fictício.