sexta-feira, outubro 17, 2008

Peta III: Dos Javalis

Peta III: Dos Javalis

O ocaso tingia já o céu de um tom afogueado.
Havia sido uma péssima tarde de caça para Torres. Durante horas, vagueara pela floresta, sem encontrar uma única presa digna de mira.
Ainda tentara frustradamente abater alguns pardais incautos, que ia avistando pousados nos ramos dos pinheiros, porém, sem qualquer outro intento senão o de extravasar o seu inconformismo em relação à jornada fracassada.
Na verdade, os alvos preferenciais de Torres eram as feras que habitavam a zona, precisamente por isso, afamada pelo perigo que representava aos que por ali se aventuravam.
Entardecia. Passos obstinados mantinham-no em marcha, esperançoso de que ainda pudesse caçar algum animal ou, pelo menos, ensaiar a pontaria. Afectado pela fadiga que lhe pesava nos membros, transportava a arma ainda estéril, em que pendurava os braços, apoiada na nuca e nos ombros, como se de um jugo se tratasse.
Enfim, resignado com a sua falta de sorte, deliberou efectuar uma pequena pausa para descanso, antes de se fazer ao caminho de regresso para casa.
Deixou a caçadeira encostada ao tronco de um pinheiro e, sentando-se no chão, roçou as costas no sopé de outro, alguns metros afastado do primeiro, procurando a posição mais confortável para repousar durante alguns minutos.
Cochilo atrás de cochilo, acabou por adormecer.
O sono não foi longo, já que, assim que abriu os olhos, foi ofuscado pela luz do sol que raiava filtrada pelas frondes das árvores em redor, sinal de que a noite ainda não havia caído.
Esfregou a vista com as mãos, pestanejando intermitentemente, num exercício de habituação à claridade.
Já se punha em pé, quando, repentinamente, numa expressão de pasmo, voltou a deixar-se cair no solo. Manifestamente atarantado, arrastou o corpo para trás, usando os cotovelos para se locomover, até que a posição do tronco não lhe permitiu recuar mais. Levantou-se devagar. Quedo de medo, apenas percorria um olhar esbugalhado pelo seu redor imediato.
Três javalis de pelagem cinzenta e espessa, machos cuja corpulência impressionante inspirava receio, cercavam-no. Roncavam ameaçadoramente, inquietos, realizando movimentos bruscos com as patas dianteiras. Com uma expressão selvagem, viva, observavam o rapaz, através da poeira que pairava no ar. Aguçavam as orelhas pequenas e pontiagudas, farejando incessantemente na sua direcção.
Aflito, Torres cogitava uma maneira de se escapar, antes que os bichos o atacassem, mas a retirada não se afigurava como uma tarefa simples.
Ao menos, se tivesse a arma por perto, poderia enfrentá-los, mas tinha-a deixado junto a uma árvore, para a qual a passagem estava bloqueada naquele momento. Delicadamente, para não enfurecer os javalis, remexeu os bolsos à procura da sua faca, mas, por descuido, nesse dia, não a trouxera.
Refira-se que Torres era um caçador desleixado. Exceptuando as ocasiões em que era acompanhado e vigiado pelo pai nas caçadas, nunca se apetrechava com os utensílios indispensáveis. Limitava-se a trazer a caçadeira e nada mais. Agora, em apuros, arrependia-se amargamente por ter ignorado as normas de segurança, que tanto se recomendavam.
Estava visto que, não se podendo defender, Torres tinha de fugir. Mas como?
Os javalis, além de se encontrarem muito próximos de si, haviam-se disposto à sua volta de uma forma que impossibilitava a saída. Além disso, o tronco denso do pinheiro que tinha à retaguarda deixava-lhe ainda menos espaço aberto.
Torres pensou em desatar a correr, mas deteve-se, quando reparou melhor nas presas robustas que se projectavam, em par, para fora da boca dos animais, a partir dos seus maxilares. O risco de ser tolhido era demasiado grande. Era preciso arranjar outra solução.
Olhou para cima, considerando a altura e a consistência dos ramos do pinheiro a que tinha as costas coladas, mas subi-lo estava fora de questão, já que não era um trepador dos mais ágeis.
Entretanto, um dos javalis chegou mais perto, fazendo o jovem sentir o fedor intensificar-se. Os seus roncos soavam a rugidos, bravo que estava o animal!
Torres estremeceu. Conhecia bem o padrão comportamental da espécie, pois já havia lidado com inúmeros exemplares, na condição de presas, e logo identificou aquela acção como precedente de um ataque iminente.
Apercebeu-se, por isso, de que uma tomada de medidas era urgente.
Os outros dois suídeos caminharam na sua direcção, imitando o anterior, também eles cuinchando agressivamente. O trio de bestas agitava os focinhos, exibindo os caninos em riste, ao passo que apertava o cerco.
O caçador estava prestes a ser caçado!
Torres, desesperado, antes que pudesse ser vitimado por qualquer investida, começou a distribuir pontapés indiscriminadamente, alternando o javali que atingia. À violência dolorosa das pancadas, os animais reagiam com grunhidos lamuriantes.
Com a fúria dobrada, acometiam raivosamente contra o rapaz, mas sem êxito, dado que eram repelidos pela dureza dos golpes das suas botas, que se mostravam um eficaz recurso de defesa.
Após sucessivos chutos, fatalmente feridos, os javalis foram tombando, um a um, quase em simultâneo, perecendo literalmente aos pés de Torres.
Este deitou-se no chão, ofegante, tentando recuperar a calma, de modo a abrandar o ritmo das explosões cardíacas que lhe abalavam o peito.
Recobradas as energias, finalmente, dirigiu-se para casa. Como troféu, escolheu o animal maior, que transportava agarrado pelas patas, em volta do pescoço, sustendo-o sobre o lombo.
Para trás, perdidos na escuridão crescente, ficavam os espólios da caçada, jazidos ao relento sobre o tapete de agulhas e pinhas que forravam a mata.